Aquele passado...

Em uma das minhas visitas semanais ao salão de beleza, ouvi minha manicure comentar que a filha dela, de 6 anos, está infernizando a vida dela porque quer uma mochila da Hello Kitty. Ameaça não ir à escola se não for com a tal mochila. Há um tempo fui visitar uma amiga e o filho dela, de uns 10 anos, ficou horas e horas jogando Playstation com os amigos. Outra criança que conheço já atingiu a marca de 80 DVDs, todos presentes dos pais.

Fiquei pensando em coisas assim esses dias. O assunto começou quando conversava com uma amiga sobre bolo Ana Maria, que eu disse ter levado na minha lancheira em época de escola. E ela me contou que isso era artigo de luxo para ela. No máximo, biscoito Maizena ou pão com manteiga. Engatamos, então, histórias sobre nossas infâncias com dinheiro curto e certos costumes adquiridos que nos fazem estranhar a vida que levam as crianças de hoje, mesmo aquela de famílias não muito abastadas.

Lembro-me que roupas, para mim, eram todas do Carrefour. Tênis era kichute. E não estou aqui necessariamente dizendo que há romantismo na falta de grana. Não era isso que nos motivava. A questão é que nossos pais não gastavam com a gente porque iríamos destruir tudo na rua. Vivíamos com joelhos ralados, tênis arrebentados, calças com rasgos homéricos. Pra quê se comprar roupas em griffes infantis caríssimas, se iríamos acabar com tudo em pouco tempo?

Eu me lembro que costumava invejar meus colegas de classe. Eram todos mais ricos do que eu. Tinham coisas que eu desejava ardentemente, em minha cabecinha infantil. Uma delas era a caixa de lápis de cor de 36 cores. Todas elas tinham, menos eu. Queria morrer. Meu sonho era usar as cores alternativas daquela imensa caixa, que não constavam na minha, com 12 lápis. Acabei ganhando de aniversário, e quase derreti de emoção. Que criança hoje ganharia uma caixa de lápis de cor de aniversário e não passaria a admirar a Suzane Ritchtofen depois dessa? Em compensação, eu fazia coisas que muitas daquelas crianças sequer chegaram perto de fazer. Eu lia todos os livros da casa. Mesmo que eu não entendesse nada do conteúdo. Eu ficava horas e horas folheando livros e livros.

Como eu não tinha as últimas novidades do mercado de brinquedos, o negócio era cuidar da imaginação. Então vivíamos na rua brincando de tudo o que se pudesse imaginar. Qualquer pedaço de pau era motivo para as mais fantasiosas histórias. Isso sem falar na queimada, pique-bandeira, jogo de taco, pega-pega, esconde-esconde, e várias outras. Vivíamos sujos, ralados, com as unhas praticamente criando formas de vida na parte inferior. E só íamos para o chuveiro arrastados pelas orelhas. Isso quando íamos. Lembro que minha mãe vinha à janela me chamar pra entrar 450 vezes antes de sair para me levar à força pra dentro de casa. Já havia escurecido, eu precisava jantar, tomar banho, fazer lição. Mas quem disse que eu queria?

Quando vejo, no mesmo salão de beleza, meninas de 5 anos fazendo as unhas, tenho uma vontade incontrolável de chegar junto e dizer: "Queridinha, por que você não vai catar umas minhocas com essas suas unhas?". Ela vai urrar de nojo, é claro. São crianças de condomínio. Crianças habituadas a assistir desenhos animados japoneses, a exigir griffes cada vez mais cedo, que ficam no computador escrevendo em miguxês, ou viciadas em jogos. Para elas, ter um celular é tão normal quanto a minha caixa de 36 lápis de cor. E eu fico me perguntando em que momento essas crianças serão felizes de verdade.

Claro que não há fórmulas definidas para ser feliz. Mas pra mim, criança que não subiu em árvore, que não ralou joelhos e cotovelos, que não levou tombos homéricos, que não quebrou uma vidraça jogando bola, que não desmontou alguma coisa de casa para saber como é por dentro, e que não se meteu em briga por causa de jogo de taco, não viveu a infância. Virou um pequeno adulto, esnobe e chato, que nunca soube exercitar sua inocência, sua curiosidade, sua vontade de inventar, de saber como as coisas funcionam. Imaginação é diferente de Internet e de jogos eletrônicos. E a convivência com as outras crianças da rua é completamente diferente.

Coca Cola era uma garrafa de 1 litro, que seria servida para toda a família no fim de semana inteiro. Chocolate era prêmio pra de vez em nunca. No Dia das Crianças eu podia levar uns trocadinhos a mais para o colégio, para comer alguma guloseima da lanchonete. O resto, era lanche de casa. Mirabel ou pão com requeijão. Presunto era algo que eu só comia quando ia à casa da minha avó. É um sabor que me marca até hoje.

Mas não estou dizendo isso para dizer o quanto era legal viver com tudo bem limitado. E sim para dizer que isso não fazia falta. Eu estava ocupada demais me divertindo, subindo em muros, quebrando telhados e fazendo traquinagens, para pensar que eu poderia ter mais coisas do que eu poderia. Eu me lembro de cada tombão que levei, e não sei como nunca quebrei um osso. Meu anjo da guarda recebia bom salário, creio eu! Ia pro sítio aos fins de semana e ficava coberta de lama até os olhos. Qualquer bacia virava uma piscina. Dane-se que eu nunca tive uma Barbie. Se tivesse, não teria tempo e nem paciência para brincar de mulher fresca e perua.

Até o prédio aqui do lado virou um grande brinquedo, na época em que estava em construção. O monte de areia e de pedrinhas virava uma montanha a ser escalada. Fazíamos até mesmo coisas nojentas, como pular na água suja que saía da grossa mangueira laranja. Quando o prédio ficou pronto e nele começou a funcionar um escritório, atormentávamos os vigias porque todas as áreas abertas viraram espaços para brincar: as plantas, o jardim, o estacionamento, etc. Aliás, se não me engano, o estacionamento virou campo de futebol. Nos escondíamos nos lugares mais imprevisíveis. Vivíamos sendo expulsos e voltando em quinze minutos para atazanar de novo.

Tomamos vários banhos de chuva. Organizamos gincanas, piqueniques. Brigamos, fizemos as pazes. Invadimos a casa alheia para pegar bola. Matamos nossos pais do coração com nossos machucados, exatamente como toda criança saudável deve fazer.

E hoje, aos 32 anos, trabalhando há mais de dez, se tenho 6 DVDs, estou exagerando. A criança do primeiro parágrafo tem mais de 80. Mal sabe ela como é bom desejar ardentemente ganhar algo, ainda que seja uma caixa de lápis de cor no aniversário...

Comentários

As simples coisas que nos faziam felizes, essas pequenas coisas do passado que nos ensinavam a dar valor as pequenas coisas da vida, as crianças de hoje vivem num mundo diferente onde os valores sao outros.
Excelente post Red.
Big Kiss
Anônimo disse…
Você definiu, exatamente, a minha infância. Idêntica à sua! Que saudades dos jogos de queimado, de pular corda, elástico, dar aulas para as minhas bonecas, jogar bola, pular muro e me esconder para comer carambola junto com o cachorro da minha avó! Caraca! Quando eu conto pros meus filhos que empinei pipa, tive carrinho de rolimã, mostro a cicatriz no joelho por tombos de bicicleta, eles mal me acreditam! E perguntam se eu não tinha vídeo game! Vou ensiná-los a bricar de "cama de gato" com um simples pedaço de barbante e levá-los a um orfanato para que eles vejam a alegria de ter uma bola de papel amassado para jogar! A infância corre, mas quando bem vivida, não tem preço!

AMEI! Belo texto! Que saudades...
Fatima Gama disse…
Ola Red's
Nossa infância foi bem difícil, na época não tínhamos tantas faciliddes porque tudo era caro, uma caixa de lápis de cor era uma fortuna, hoje tudo é barato e posso dar tudo ou melhor quase tudo que minha filha quer e nem tenho tantas posses assim, mas achei muito certo o que disse sobre dar valor ao que não se pode ter, o desejar e ficar feliz quando se ganha, as crianças de hoje já não experimentam mais estas coisas, lembro que quando eu era adolescente era moda um sapato e eu queria muito, todas as amigas tinham e eu não, sonhava com ele e tudo, todos os dias passava na loja na volta da escola para ficar olhando e sonhando no dia que eu teria um rsrs, minha irmã mais velha já trabalhava e um dia ela recebeu o pagamento e comprou pra mim, nem acreditei quando ela me presenteou, nunca mais esqueci!
Anônimo disse…
talvez a culpa não seja das crianças mas sim dos pais que querendo suprir o que não tiveram na infancia exageraram na dose...
Anônimo disse…
Só para dizer que:

AMEI AMEI AMEI o texto!!!

Fez-me sentir saudades da minha infância.

Jinhos

Ana